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Os olhos da floresta
São dez da noite em Alta Floresta, no Mato Grosso. Antes de viajar 20h rumo ao Parque Nacional do Juruena, o analista ambiental Elildo Carvalho Jr. faz a última checagem nos equipamentos. Pelo terceiro ano consecutivo, a equipe do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (Cenap/ICMBio) vai instalar 60 armadilhas fotográficas na mata para fazer um levantamento da fauna local. Carvalho se pergunta se, a exemplo do ano passado, vão conseguir registrar mais espécies de difícil visualização, como onças-pintadas, antas e queixadas.
A 1.400 km dali, Raimundo Nonato Soares, morador da Reserva Extrativista do Cazumbá-Iracema, já dorme. É estação seca no Acre, época do ano em que ele também adentra a mata para coletar informações sobre a biodiversidade. Mas seu objeto de investigação são as castanheiras. Quantas terão crescido? Quais estarão prestes a dar frutos? Habitada por 350 famílias, a Resex de 750 mil hectares é monitorada com a ajuda dos próprios extrativistas.
Desde 2014, o Programa Nacional de Monitoramento da Biodiversidade, também conhecido como Monitora, reúne servidores do ICMBio, centros de pesquisa e comunidades tradicionais em torno de um mesmo objetivo: monitorar a biodiversidade, levantando informações que norteiem as ações de conservação nas áreas protegidas. Em 2015, o ARPA o adotou como marco referencial e, desde então, o número de UCs em que é realizado o monitoramento na Amazônia pulou de seis para mais de 30 – e a lista não para de crescer.
São utilizados dois protocolos. Distintos em complexidade, porém complementares, eles avaliam o status das populações de grupos-alvo como borboletas, mamíferos, plantas lenhosas, peixes e aves que ocorrem em diversas Unidades de Conservação. No Parna Juruena, Elildo segue a metodologia avançada do protocolo de mamíferos, baseada em diretrizes internacionais. Na Resex Cazumbá-Iracema, Nonato toca a versão básica, desenvolvida pelo ICMBio especialmente para atender as demandas da região.
Protocolo básico: o protagonismo da comunidade
Caracterizado pela simplicidade e baixo custo, o protocolo básico foi implementado pela primeira vez em 2014. “Os monitores da biodiversidade são os próprios moradores das comunidades tradicionais, capacitados para percorrer as estações amostrais e coletar dados sobre alvos de biodiversidade, sejam eles determinados pelo ICMBio ou pela própria unidade”, explica a coordenadora do Monitora, Tathiana Chaves.
No caso do extrativista Nonato, isso significa percorrer anualmente cinco castanhais selecionados, medindo a circunferência dos troncos, analisando o tamanho das copas e verificando fatores que podem influenciar na produção, como a quantidade de cipó e de cupins. Já os colegas treinados no monitoramento de borboletas frugívoras checam as 48 armadilhas instaladas ao longo de outras três trilhas, registrando, fotografando e libertando cada um desses insetos. Em 2017, o grupo fez 1.800 registros de borboletas na Cazumbá-Iracema.
Por ter uma execução simples e rápida no campo, o protocolo básico foi desenhado para beneficiar o maior número possível de UCs, alcançando inclusive as mais isoladas e menos habitadas, como algumas apoiadas pelo ARPA. Neste caso, o Monitora pode ser implementado em intervalos temporais maiores. “É como se tivéssemos expedições científicas regulares nestes locais de difícil acesso realizadas pelo povo da floresta, que é dotado de um saber ecológico ancestral”, diz Tathiana.
Ela acompanhou de perto o primeiro treinamento dos comunitários na Estação Ecológica da Terra do Meio, no Pará, quando ainda atuava como gestora. “Os jovens costumam mostrar mais disponibilidade para ser monitor. Mas muitos trabalhos ocorrem em dupla, assim diferentes gerações operam juntas, reforçando o conhecimento dos mais experientes. Estamos inaugurando um novo perfil profissional dentro das áreas protegidas, além de incentivar o intercâmbio de saberes entre gerações e entre a academia e as comunidades tradicionais”, afirma.
Protocolo avançado: detectando o impossível
No protocolo avançado para mamíferos, o levantamento de dados é todo baseado no registro fotográfico feito com as câmeras trap, aquelas que Elildo foi instalar no Parna Juruena. A metodologia segue as diretrizes da Tropical Ecology Assessment and Monitoring (Avaliação e Monitoramento Ecológicos Tropicais – TEAM, na sigla em inglês). Adotado por uma rede internacional de 21 áreas protegidas espalhadas pela América, África e Ásia, o protocolo avançado TEAM está presente em cinco UCs no Brasil: o Parna Juruena, a Rebio Gurupi, a ESEC Terra do Meio e as Florestas Nacionais do Jamari e Caxiuanã.
“Desta forma, podemos analisar nossas Unidades de Conservação também num contexto regional e global. Futuramente, seremos capazes de cruzar resultados sobre o impacto das mudanças climáticas em diferentes recortes regionais e de espécies, por exemplo”, explica Elildo.
O monitoramento avançado de mamíferos foi inaugurado no Brasil em 2015. Por isso, ainda não há amostragem suficiente para sugerir tendências nas populações de mamíferos. “No entanto, pela primeira vez estamos registrando espécies de difícil detecção, que escapam ao protocolo básico”, comemora. O queixada e o veado mateiro, fotografados na Rebio do Gurupi, e a onça-pintada e a anta, na ESEC Terra do Meio, são alguns exemplos.
Gerson Buss, analista ambiental do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Primatas Brasileiros (CPB), também comemora alguns dos resultados alcançados. Ele explica que há 109 diferentes primatas na Amazônia brasileira, das quais 16 estão ameaçadas de extinção. “Dentre as ameaçadas, o Monitora já registrou 11, ou seja, 70%. Dados assim são muito relevantes para o processo de avaliação do estado de conservação dessas espécies”, diz.
Graças ao protocolo avançado, entre 2016 e 2017 foram produzidas mais de 245 mil imagens. Ao todo, foram identificadas 112 espécies de mamíferos e aves, incluindo 17 vulneráveis, duas ameaçadas e duas em perigo crítico.
Embora as câmeras sejam altamente tecnológicas, algumas imagens desafiam até o mais talentoso dos sistematas. Neste momento, o servidor quebra todas as regras e recorre ao Facebook, onde o grupo “SMOB”, que reúne 500 membros ligados ao Programa Monitora, do ICMBio, debatem sobre a possível identidade dos bichinhos até altas horas da noite. Os olhos da floresta não descansam.