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Vida de marisqueira
Dona Jura retirando as cascas do mexilhão cozido, ainda quente. Foto: Juliana Quintino
Quando o famoso Museu de Arte Moderna (MAC) ergueu-se pomposo na ponta da Praia de Boa Viagem, em Niterói, já fazia tempo que Iraci Cândido da Conceição percorria diariamente aquelas areias. Com 68 anos de idade, faz mais de 40 que ela vive como marisqueira. E é com as mãos nos mexilhões que ela e suas companheiras silenciosamente preservam suas tradições, enquanto resistem à histórica marginalização num território que se tornou grande ponto turístico da cidade.
“Eu vim trabalhar aqui com 23 anos. Fico preocupada de não poder continuar, porque estão querendo transformar ainda mais esse lugar”, diz ela, se referindo às propostas do poder público local de ‘revitalizar’ a área. “Mas se deus quiser, vai dar certo!”, profetiza.
Parte dessa esperança está depositada na iniciativa Pesca Solidária, que apoia as mulheres marisqueiras de Boa Viagem na estruturação e consolidação de uma cooperativa. Por meio de apoio jurídico, oficinas de cooperativismo e associativismo, o projeto pretende fortalecer institucionalmente o grupo, para que as catadoras de marisco ganhem autonomia no processo produtivo e de comercialização. Além da regularização do coletivo, a ideia é que elas tenham também um espaço físico onde possam se reunir e se organizar com mais facilidade.
“Tinha muitas pessoas paradas aqui. Então eu vejo o projeto como uma coisa boa, um meio de ajudar a gente a arrumar um dinheirinho para viver”, diz dona Iraci – ou melhor, dona Jura, como é conhecida no Morro do Palácio, onde vive há décadas com vista para a praia que sempre lhe sustentou.
“Se você for onde eu moro, você não acredita. Chega ali e pergunta por mim: todo mundo me conhece”, diz. Afinal, dona Jura é puro movimento. Com disposição de garota nova, o corpo não fica quieto um dia sequer: acorda antes do sol, levanta e, entre um bom dia e outro para os vizinhos, cata as lenhas que irão cozinhar os mariscos mais tarde. Antes do almoço, já está com os pés na areia para arrancar das pedras seu ganha-pão.
“Eu já estou aposentada, mas gosto muito de trabalhar. Boto na cabeça o tabuleiro de mexilhão, descasco, cozinho, embalo, vendo… Me sinto feliz assim. E é engraçado que não sinto cansaço”, diz. O que não significa de jeito algum que o trabalho é fácil: há tantos anos raspando as conchas nas mãos calejadas, ela já perdeu parte das suas digitais. Mas nenhum desafio de tantos que já atravessou parece desmotivá-la no seu ofício.
É com ele, afinal, que dona Jura conseguiu construir sua casa e pagar suas contas. Hoje, já tem até uma ‘pequena poupancinha’ e sempre que pode ajuda os netos com a renda que traz do mar. “Eu chego no mercado e compro arroz, feijão, macarrão. Quem me deu isso? O dinheiro do marisco. Foi a praia que deu. Então eu tenho que agradecer”, diz ela, orgulhosa de sua trajetória.
Só na semana passada, conta, jogou nas costas nove sacos carregados de mexilhão que trouxe das rochas. Se ela tem intenção de parar? “Não aguento ficar parada dentro de casa. Tenho que sair, me movimentar”, avisa, enquanto se arruma para mais uma jornada na Boa Viagem. “Nesta idade que eu estou, fazendo o que eu faço, eu acho uma coisa linda”, diz.