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Tradição em movimento: intercâmbio cultural gera dilema entre os Kayapó
Foto: Reprodução
Uma festa indígena ao som de música eletrônica oriental mixada com batidas de povos originários equatorianos. Essa é a descrição do Hina Hina, festa que ganhou popularidade entre os jovens Mebêngôkre-Kayapó em meados da década passada graças a um pendrive esquecido e reacendeu o debate sobre os limites do intercâmbio cultural nas aldeias desse povo. A adoção de elementos de outras culturas descaracteriza a tradição de um povo? Ou a formação da identidade cultural é um processo vivo, inevitável e rico de troca?
A história do surgimento do Hina Hina tem algumas versões. A mais frequente conta que, após uma feira de sementes na Chapada dos Veadeiros em que tiveram contato com povos originários equatorianos, jovens Kayapó encontraram o pendrive esquecido, no qual havia a música que, em algum ponto, tinha um som parecido com “hina hina”.
Levado a aldeias do território Kayapó, o arranjo instrumental conquistou rapidamente outros jovens, que começaram a criar coreografias com base nas danças tradicionais Kayapó e a promover festas em que, eventualmente, havia competições de dança entre grupos.
“Até batizados foram realizados em eventos de Hina Hina. Com isso, os mais velhos ficaram com medo de os jovens esquecerem as festas antigas e proibiram o Hina Hina. Hoje, acredito que não aconteça mais em nenhuma aldeia do nosso povo”, explica Pati Kayapó, morador da aldeia A’Ukre, localizada na Terra Indígena Kayapó (PA).
Dada a intervenção das lideranças, que, em tempos de redes sociais, têm especial preocupação com a transmissão das tradições do povo Mebêngôkre, é impossível saber se o Hina Hina permaneceria como um novo traço cultural ou não passaria de uma moda. A incorporação de costumes de outras culturas às próprias tradições não é algo novo entre os Kayapó. Na década de 1970, forrós embalaram as aldeias em uma festa chamada de “samba”, que deixou de ser realizada tempos depois. Já em um de seus mitos, os Kayapó contam que uma criança remanescente do Povo Morcego, que vivia em cavernas, os ensinou cantos e danças usados posteriormente em suas festividades.
“Os Kayapó absorvem e transformam aspectos culturais de outros povos. Assim, como o Hina Hina, que foi um caso emblemático, existe a Festa da Mandioca, incorporada a partir do contato com povos indígenas do Alto Xingu”, conta Simone Giovine, cineasta e um dos coordenadores do Coletivo Audiovisual Beture, formado dentro das aldeias.
Segundo ele, dosar as influências recebidas por meio de smartphones e tablets é um desafio dos jovens Kayapó, a quem é conferida a responsabilidade de manter fortes e valorizadas as tradições de seu povo. “Os jovens precisam estar conectados às suas tradições e atuar como defensores delas em um mundo novo, cada vez mais modernizado. O Coletivo Beture tenta oferecer ferramentas para que os jovens da etnia reflitam e lidem com isso”, diz ele.
A reflexão do grupo sobre o intercâmbio cultural gira muito em torno do conceito de mekukradjá àbikàra – algo como “cultura impura”, em português – e vem permeando também a produção de obras para a exposição que será realizada pelo projeto Tradição e Futuro na Amazônia, patrocinado pelo Programa Petrobras Socioambiental, em 2023. Nelas, o Beture quer mostrar que a absorção de elementos de outras culturas pelos Kayapó, embora causem mudanças, podem também contribuir para fortalecer as tradições milenares do povo, caso dos registros audiovisuais e fotográficos feitos pelo próprio coletivo. Afinal, se o mundo muda todos os dias, que seja para ajudar.