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Terra nossa
“Eu posso morrer a qualquer hora, mas quero que vocês garantam que a luta continua”. As palavras de Chico Mendes durante sua última visita ao acampamento de seringueiros e agricultores em Sena Madureira, no Acre, ainda ecoam na cabeça de Aldeci Cerqueira Maia, o Nenzinho. Era outubro de 1988, e o jovem de 26 anos reafirmou naquele momento a promessa feita à mãe seringueira Joventina, em seu leito de morte: não arredaria pé da comunidade Cazumbá-Iracema, e lutaria pelo direito de sua família e de seu povo viverem do extrativismo.
Hoje o presidente da Associação dos Seringueiros do Seringal Cazumbá, entidade que participou da criação da Resex Cazumbá-Iracema e faz a gestão participativa da unidade, diz que sua missão está dando frutos muito aguardados. “No início do ano que vem está prevista a assinatura da concessão do direito real de uso do território. Só descanso no dia em que nem decreto do próprio governo for capaz de tomar a terra da gente”, diz.
Criada em 2002, a Reserva Extrativista Cazumbá-Iracema foi a primeira Resex do estado do Acre demarcada pelo ICMBio. Na prática, a concessão do direito real de uso vai transferir legalmente a posse dos 750 mil hectares para a comunidade.
Nenzinho aprendeu a cortar seringa aos oito anos de idade, no seringal da família Cerqueira Maia, demarcado pelos seus bisavós, retirantes nordestinos. Aos 21 anos buscou capacitação de agente comunitário de saúde. A visita a um amigo que tinha perdido os três filhos para o sarampo o inspirou a trabalhar como voluntário em campanhas de vacinação. Aos 24, a morte do pai o transformou no chefe da família de 12 irmãos – e a liderança praticada em casa se fez necessária na comunidade de 1.800 pessoas.
A queda do preço da borracha e o processo de reforma agrária que dividia os seringais em lotes seis vezes menor do que o praticado pelas comunidades tradicionais atraiu produtores agropecuários. De acordo com Nenzinho, fazendeiros compravam lotes adjacentes e os transformavam em pasto para boi, fragmentando a floresta. “Minha mãe foi minha maior professora, e me disse que a coisa mais importante na vida de uma pessoa é a sua identidade. E o seringueiro estava perdendo a dele”, conta.
Nenzinho andava a floresta a pé, conscientizando cada família sobre a possibilidade de criação de uma Reserva Extrativista que garantiria o direito sobre a terra. Com as ameaças de morte que recebeu – a maioria por denunciar invasores de terra, caçadores e outros infratores –, entendeu que o que protegeria a floresta era o diálogo.
“Vi que precisava sensibilizar o meu povo e os fazer compreender a importância dos animais para a cadeia alimentar. Parei de atacar quem atacava a floresta e criei um programa que ensinava as pessoas a cuidar dos animais silvestres”, afirma. Contou com a ajuda do Padre Paolino Baldassari, ícone do ativismo ambiental na região, e foi elevado à condição de líder do movimento.
Chico Mendes seria assassinado poucas semanas depois de visitar os extrativistas de Sena Madureira e pedir que eles não desistissem da luta. Nenzinho diz que o discurso lhe deu a coragem necessária para encarar a difícil jornada de liderar a resistência na Cazumbá-Iracema. Foi jurado de morte quatro vezes e sofreu dois enfartos. Mas também recebeu seis prêmios nacionais por seu trabalho no Acre.
Há 16 anos atuando como um dos gestores da unidade de conservação, na sede em Sena Madureira, ele mantém o bigode em homenagem a Chico, e diz que não se envaidece: o mérito pelas vitórias é da comunidade. “Nunca quis ser chefe da unidade. Eu quero sempre estar em um lugar de defesa dos extrativistas, por isso só atuo como substituto. E quando a concessão for assinada, meu trabalho acaba”, explica.
Enquanto isso, os comunitários que sempre fizeram resistência ao seu lado, hoje trabalham em mutirão na Resex para construir a casa em que Nenzinho espera morar ano que vem, quando finalmente voltar para a casa.