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Reintrodução de ave considerada extinta na Caatinga promove a restauração do bioma
Em Curaçá (BA), o mês de junho foi marcado por um momento histórico para a conservação da biodiversidade brasileira: a soltura de oito ararinhas-azuis (Cyanopsitta spixii) no céu da Caatinga. A volta da espécie para seu ambiente natural ocorre pouco mais de duas décadas depois de ter sido declarada extinta na natureza. A reintrodução da ararinha-azul na Caatinga baiana, regulada pelo Plano de Ação Nacional (PAN) para a Conservação da Ararinha-Azul, é um movimento gradativo que durará anos e pede um esforço de organizações e comunidades locais para a restauração de áreas degradadas que serão habitadas pela espécie.
As ararinhas-azuis se abrigam nas matas de caraibeiras (ipê-amarelo) que se espalham pelo leito de rios e córregos. Essas matas chegam a ter árvores de 10 a 15 metros de altura. As aves nidificam na mata, alimentando-se de árvores da caatinga seca, como a catingueira e o pinhão.
No interior do município baiano, de pouco mais de 30 mil habitantes, o projeto RE-Habitar Ararinha-Azul vem implementando ações de recuperação de áreas degradadas em propriedades privadas próximas a unidades de conservação. As ações contribuirão para a conservação da ararinha-azul na natureza.
O projeto tem como meta recuperar 200 hectares de áreas degradadas da Caatinga até maio de 2023. Desses, 100 hectares serão de vegetação na beira de rio, locais designados como áreas de preservação permanente (APP) pela lei. “Recuperar semiárido é um desafio em qualquer lugar do mundo. Nossa ideia é recuperar aquelas áreas em que vai habitar a ararinha-azul. Agora, de nada vai adiantar as aves vivendo numa área empobrecida. A gente precisa melhorar a condição de infraestrutura para os moradores locais. Optamos por trabalhar a recuperação do recurso hídrico para melhorar a condição da propriedade privada, permitindo um tripé: floresta recuperada para garantia de segurança hídrica, energética e alimentar”, conta o biólogo Renato Garcia Rodrigues, coordenador no Núcleo de Ecologia e Monitoramento Ambiental (NEMA) da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) e responsável técnico pelo projeto. A Univasf tem sede em Petrolina (PE).
Desde 2016, o NEMA vem cooperando com a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) para conservar a fauna e a flora locais. Juntos, lideram um programa de recuperação de áreas afetadas pela obra de transposição do rio São Francisco. Ao todo, o programa pretende recuperar 2,5 mil hectares. Desse total, 800 hectares já foram recuperados.
A experiência acumulada nos últimos anos permitiu ao NEMA desenvolver um pacote de tecnologias sociais para restauração em larga escala de áreas degradadas na Caatinga e, consequentemente, melhorar a oferta de água. “Conhecemos a riqueza de espécies na região e sabemos como a Caatinga se comporta. Chamamos o pacote tecnológico que consolidamos de ‘pacote hidroambiental’, que é um conjunto de ações integradas de recuperação de microbacias, mata ciliar, cursos d’água e da vegetação nativa”, explica Renato.
O “pacote hidroambiental” está sendo colocado em prática pelo projeto RE-Habitar Ararinha-azul. Na comunidade de Melancia, distante 25 km do centro de Curaçá (BA), nove proprietários de grandes áreas participam dessa fase de implementação. Em comum, as áreas têm algum grau de degradação e proprietários interessados em promover a restauração da Caatinga.
Uma das tecnologias do pacote em implementação são as chamadas “barragens sucessivas”, que retêm o sedimento à medida que avança o curso d’água de um córrego. Até o final de outubro, tinham sido concluídas 39 barragens desse tipo.
Outra tecnologia do pacote são as “barragens subterrâneas”, que barram a água que corre pelo lençol freático, aumentando a umidade debaixo da terra e sustentando-a onde menos evapora. A construção desse tipo de barragem passa por cavar nas margens dos rios até atingir a rocha, o que se dá, em média, com 2,5 metros de profundidade. O tamanho das barragens varia. Já foram feitas, por exemplo, unidades de 80 metros de comprimento. Atualmente, está em construção a terceira barragem subterrânea. No total, serão sete pelo projeto.
O pacote desenvolvido pelo NEMA ainda prevê a construção de “cisternas subterrâneas” e dos chamados “cordões de contorno”. Os cordões são valas. Dentro de cada vala, plantam-se sementes por meio de semeadura direta. O plantio acontece em paralelo à drenagem para evitar que sedimentos corram para dentro do leito do curso d’água.
“O aparato técnico desenvolvido evita que se faça uma barragem tradicional, que impede o curso d’água para o terreno do vizinho. Com um terreno mais úmido, posso plantar árvores nativas. Fazemos o plantio em núcleos na beira do rio, o que propicia o crescimento da planta de forma mais rápida”, explica o coordenador do NEMA.
Nos 200 hectares a serem restaurados, serão implementados 2.953 núcleos. Cada núcleo é planejado com 13 mudas. São usadas até 25 espécies de plantas nativas entre secundárias (de crescimento mais lento e maior porte para as zonas mais úmidas) e pioneiras (que crescem mais rápido e são plantadas nas zonas mais secas ou degradadas do terreno). A taxa de sobrevivência das espécies é de, em média, 70%.
Até o final de outubro, 38.436 mil mudas de 24 espécies haviam sido introduzidas em propriedades rurais nas margens de córregos e rios. O plantio de mudas se intensificará a partir de dezembro, quando inicia a temporada de chuvas.
“Queremos mostrar que é possível fazer a recuperação da Caatinga. Ela pode ser recuperada com o envolvimento das comunidades locais. A recuperação do ecossistema nativo traz benefícios sociais porque tem potencial de melhorar a vida das pessoas de forma substancial”, sinaliza o biólogo.
Em um solo com mais disponibilidade de água, é possível implantar sistemas agroflorestais (SAF), fazendo consórcios entre espécies nativas e frutíferas, como mangueiras e mamoeiros, ou capim para silagem e criação de bode, que é uma fonte local de geração econômica.
Além de ações de recuperação, o projeto estimula a construção de viveiros de muda para apoiar a restauração e cursos de capacitação.
Ao final do projeto, a meta é deixar como legado três novos viveiros de mudas nativas na região para que forneçam para o projeto e para a rede que atua na recuperação de vegetação em decorrência da obra de transposição do São Francisco.
Diversos cursos de tecnologias sociais para recuperação de áreas degradadas e recursos hídricos têm sido oferecidos nos últimos meses. Estão previstos um total de 10 cursos no total.
Em setembro, aconteceu o curso gratuito sobre cordões em contorno para mais de 25 pessoas, que se reuniram na Associação dos Agropecuaristas da Fazenda Melancia e Adjacências, em Curaçá (BA).
Já em outubro, o curso gratuito de construção de barragens sucessivas foi oferecido para os moradores da região. Mais de 20 pessoas aprenderam sobre conceitos importantes da área ambiental, como bacia hidrográfica, ciclo hidrológico, erosão do solo e tecnologias sociais para a prevenção da erosão com foco nas barragens sucessivas.
Em dezembro de 2022, avançando com essa importante estratégia de conservação da biodiversidade brasileira, está prevista a soltura de mais 12 ararinhas-azuis na natureza.