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Recuperação da APA do Ibirapuitã mobiliza produtores rurais no Rio Grande do Sul
Preocupados com a redução de áreas com pasto nativo, perda de animais nos rebanhos em decorrência de alimentação deficiente e o futuro do Pampa na Área de Proteção Ambiental (APA) do Ibirapuitã, produtores rurais da região têm se engajado em ações que promovem a recuperação e a conservação da vegetação campestre. Diferentes projetos atuam na Unidade de Conservação (UC). Um deles, o RestaurAPA, apoiou um casal de pequenos produtores rurais a conseguir algo que parecia impossível: eliminar na propriedade a incidência de morte de animais por perda ou baixa qualidade do pasto ou pelas intempéries climáticas que atingem o Pampa.
A APA do Ibirapuitã é uma UC localizada no Pampa gaúcho, que abrange os municípios de Alegrete, Quaraí, Rosário do Sul e Santana do Livramento. A UC é reconhecida pela diversidade biológica que abriga de um bioma que, no Brasil, está restrito ao estado do Rio Grande do Sul.
Nas últimas décadas, a biodiversidade da região vem sendo impactada negativamente pela conversão do solo para o monocultivo intensivo, pela introdução de espécies exóticas, por queimadas e pelo uso de agrotóxicos. O impacto contribui para contaminar a terra, a água e o ar e diminuir a vegetação campestre, além de promover erosão, perda de nutrientes e compactação do solo, que tende a ficar menos produtivo e mais suscetível à degradação.
Na propriedade Novo Horizonte, localizada a 40 quilômetros de Santana do Livramento (RS) e a cinco da fronteira com o Uruguai, o casal de pequenos produtores rurais Elenice e Luciano do Espírito Santo promove uma mudança radical no manejo da terra. No local, predomina a vegetação campestre e plana, mas também há cerros (colinas ou morros isolados que se destacam na paisagem) e capões de mata, pequenos bosques localizados geralmente próximos a rios e arroios (cursos d’água de pequeno porte), que tornam o ambiente úmido e propício para o desenvolvimento de árvores.
Com o apoio do projeto RestaurAPA, o casal implantou em 70 dos 120 hectares da propriedade o pastoreio rotativo. O objetivo é aumentar a eficiência da pastagem nativa – com maior qualidade nutricional. O projeto forneceu insumos, como mourões e arames, e assistência técnica para a construção de potreiros. Também chamados piquetes, são áreas cercadas para a pastagem do gado bovino, de ovinos e de equinos.
“O manejo rotativo do campo é feito ‘piqueteando’ (rodando) os animais de potreiro em potreiro. Cada potreiro é dividido por cerca elétrica. No total, são 15 na nossa propriedade. Os animais rodam juntos a cada três dias. O pastejo rotativo acontece o ano todo. A rotatividade faz com que cada piquete descanse por até 45 dias. Assim, cuidamos do desenvolvimento do pasto nativo, que se renova”, explica Elenice.
Resultado: desde quando começou o projeto, em 2020, não registram morte de animais por perda ou baixa qualidade do pasto ou pelas intempéries climáticas que vêm atingindo o Pampa nesta década – como as estiagens de 2022 e 2023. “Melhorou bastante depois que começou com os potreiros. Mantemos nossas 65 rês (raças bovinas Angus e Braford), as 150 ovelhas (raça Merino) e os 10 cavalos (raças Crioulo e Persa). O pastoreio rotativo ajuda a enfrentar a mudança do clima”, pontua Luciano.
O casal assumiu a propriedade rural com os dois filhos, em 2019, após o falecimento do pai de Elenice. A chegada no campo veio em um período de situação financeira restrita e impossibilidade de cuidarem sozinhos da terra.
“Encontramos uma área degradada. O campo estava ‘sobrepastejado’ com gado, cavalo e ovelha. Viviam em pastejo contínuo [quando ficam soltos no campo por um longo período de tempo, as plantas ficam expostas ao pastoreio intensivo]. Não havia cuidado. O pai dizia: ‘Quanto mais gado no campo, melhor é’. A educação que ele recebeu era que estava tudo bem animal morrer no inverno. E, naquele primeiro inverno, parte do rebanho morreu”, lembra Elenice.
Meses depois, os técnicos da Emater/RS visitaram a propriedade e sugeriram que o casal participasse do RestarAPA. A propriedade Novo Horizonte se enquadrava no perfil do projeto.
Uma das responsáveis técnicas pelo RestaurAPA, a doutora em botânica Mariana Vieira, da Unilasalle, conta que os produtores rurais foram sugeridos pelo gestor da APA do Ibirapuitã e pelos profissionais da Emater/RS.
“São 20 produtores rurais beneficiados pelo projeto atualmente. São perfis heterogêneos, mas, de forma geral, são pecuaristas familiares com propriedades de até 300 hectares (o que equivale a 300 campos de futebol), possuem mão de obra familiar no estabelecimento, estão abertos a melhorar a condição do campo com técnicas não utilizadas até então por eles, têm forte ligação com a terra e sabem a responsabilidade que possuem no projeto”, destaca Mariana.
Para participar do RestaurAPA, o produtor rural tem a sua contrapartida. Ganha material para melhorar infraestrutura na propriedade (como estruturas para divisão de piquetes destinados à rotação do gado, peças para construção de bebedouros para animais e roçadeiras para controle do capim-annoni), mas deve executar as ações combinadas de recuperação da vegetação campestre.
Combate ao capim-annoni
A presença do capim-annoni é uma ameaça na APA do Ibirapuitã. A espécie exótica invasora foi introduzida na década de 1950 e tem se espalhado rapidamente pelos campos nativos, comprometendo o equilíbrio da fauna e flora nativas, a produção pecuária sustentável e a alimentação de rebanhos bovino, ovino e equino.
Além do manejo de pastagens, como a realizada na propriedade de Elenice e Luciano, o combate ao capim-annoni também é foco do RestaurAPA para recuperar áreas degradadas na UC. “O capim-annoni não é desejado pelo produtor rural. Tem baixa qualidade forrageira e, como é muito fibroso, causa problemas na dentição dos animais”, afirma Mariana.
Essa também é a percepção do produtor Enir Villaverde, do Alegrete (RS), que trabalha com recria de gado bovino. No estabelecimento de 157 hectares em que vive com a esposa, o filho e o cunhado, parte foi invadida pelo capim-annoni. Por intermédio da Emater/RS, convenceu-se de que o projeto poderia ajudá-lo a combater a espécie exótica invasora. Hoje, é um dos produtores beneficiados pelo RestaurAPA.
“O projeto forneceu uma roçadeira mecânica para diminuir o capim-annoni no campo, além de sementes de pasto nativo, adubo, ureia… Os técnicos, que nos visitam mensalmente, ensinaram a usar a máquina e nos orientam sobre o que está bom e o que podemos melhorar. Esse tipo de apoio nos motiva a seguir na pecuária e a restaurar o Pampa porque melhora o pasto para criação de animais”, salienta Enir.
De toda a propriedade, que está no projeto, o produtor rural reserva 15 hectares para o controle químico do capim-annoni. Porém, o método de combate ao capim-annoni foi aplicado em poucos hectares em decorrência da seca dos últimos dois anos. “Se passarmos a roçadeira em época de seca, não resolve nada. A técnica de corte deve ser usada quando a planta chega em uma determinada altura. Se está baixa demais, pega as espécies nativas. Aí, vamos só deixar o solo exposto”, completa Enir.
Legado para as futuras gerações
O engajamento de produtores rurais locais permite que as técnicas, as trocas e os ensinamentos compartilhados por intermédio do projeto permaneçam na APA do Ibirapuitã. As lições ficam para o futuro em prol da conservação da biodiversidade local e a sustentabilidade da produção rural na região.
“Assim, a riqueza dos campos pode ser valorizada, aliando a produção de carne através da flora nativa nesta região que é tão diversa. O projeto deixa a mensagem de que é possível produzir bem, tendo como aliado o manejo do campo para controle do capim-annoni e preservação do Pampa”, destaca Mariana.
Em comum entre os produtores rurais beneficiados pelo projeto, estão o amor pelos campos nativos, a relação cultural e história com o lugar e a luta pela conservação do bioma. São histórias herdadas de geração em geração que permanecem vivas.
“Meu pai era peão. Eu me formei na cidade, mas minha origem é o campo. Desde que o velho morreu, recebi um chamado graças ao meu marido [Luciano]. Pertencemos à terra. Quero que consigamos nos manter aqui. Tenho esse gosto, como meus antepassados. Sonho em continuar pertencendo a esse lugar e passar esse valor para nossos filhos para que cuidem da propriedade, do campo, do Pampa, para a família deles e deem valor quando chegar a vez deles”, aponta Elenice.
“Tem coisa da natureza que não tem preço. Dentro da nossa terra, nasce um arroio que deságua no rio Ibirapuitã, que, por sua vez, brota ao lado da escola em que estudam nossos filhos. Isso é morar na APA do Ibirapuitã. Na minha passagem [pela vida], quero fazer o máximo possível para preservar a natureza, o Pampa”, diz Luciano.