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Os mecanismos da palmeira-juçara para driblar o alagamento
Em um mundo onde os eventos climáticos extremos serão cada vez mais frequentes, tornam-se fundamentais pesquisas que joguem luz sobre os impactos que secas prolongadas, alagamentos e aumento de temperaturas podem ter sobre a fauna e flora. Com isso em mente, o ecólogo Guilherme Gama de Oliveira, selecionado em 2022 pelo Bolsas FUNBIO – Conservando o Futuro, dedicou seu projeto de pesquisa a entender como esses estresses ambientais afetam a reprodução e estrutura populacional de uma espécie emblemática para a Mata Atlântica: a palmeira-juçara (Euterpe edulis). A árvore, ameaçada de extinção, é uma espécie-chave tanto do ponto de vista ecológico quanto social e econômico, da qual se produz o “juçaí”, o açaí da Mata Atlântica.
A pesquisa apresenta indícios de que populações de palmeira-juçara submetidas a regimes de alagamento têm buscado uma forma alternativa de reprodução para retardar o colapso populacional.
A palmeira-juçara é uma planta que pode se reproduzir de duas formas: sexuada, através de seus frutos e sementes; e assexuada, onde um novo indivíduo é gerado diretamente das raízes da planta mãe, formando uma touceira. Por manter a mesma genética da árvore “mãe”, essa estratégia também é conhecida como reprodução clonal. Essa última não é considerada tão comum para a espécie.
“O objetivo do meu trabalho foi tentar entender o que poderia estar gerando a reprodução clonal da palmeira-juçara e quais são as consequências disso. E a minha hipótese é de que são os estresses ambientais, condições ambientais adversas, que estão motivando o uso dessa via reprodutiva pela espécie”, conta Guilherme Gama. O resultado da sua pesquisa revelou que a reprodução clonal pode ser uma uma alternativa que aumenta as chances da germinação e desenvolvimento de novos indivíduos em situações de alagamento.
Em sua pesquisa, o ecólogo estudou quatro populações situadas em unidades de conservação inseridas em diferentes contextos no estado do Rio. Duas na região serrana – nos parques nacionais do Itatiaia e Serra dos órgãos – onde as temperaturas são mais amenas e o dossel florestal mais fechado. E outras duas no nível do mar – no Parque Nacional Restinga de Jurubatiba e na Reserva Biológica Poço das Antas – onde as temperaturas são mais elevadas, o dossel é mais aberto e há um regime periódico de alagamento.
Em campo, o pesquisador fez um levantamento demográfico das quatro populações, com medições morfológicas e fisiológicas de indivíduos para compará-las e tentar identificar as diferenças entre os indivíduos que se reproduzem clonalmente e os que não.
“Em Jurubatiba e Poço das Antas eu encontrei pouquíssimas plântulas [estágio inicial da planta]. Isso significa que existe algum estresse ambiental que restringe o estabelecimento de novos indivíduos”, explica. A causa seriam os alagamentos, causados pela elevação do lençol freático e as fortes chuvas. “Eu fiz campos na época das chuvas e houve lugares que ficaram alagados por pelo menos dois meses. E esse processo de recrutamento de plântulas parece ser bastante afetado pelos regimes de alagamento. Sobram poucos espaços seguros para o desenvolvimento dessas plântulas”, pontua.
O pesquisador constatou que ambas as populações de palmeira-juçara em Jurubatiba e Poço das Antas estão em declínio. A reprodução clonal, porém, tem desacelerado o colapso dessas populações vulneráveis aos alagamentos. “Essas duas populações estão decrescendo, mas num cenário em que eu retiro esse recrutamento clonal, as populações decresceriam numa taxa muito mais severa”, explica.
“Encontrei indícios de que a reprodução clonal da palmeira-juçara está sendo motivada como uma resposta a esse alagamento. Isso me permite entender como o indivíduo enfrenta esse estresse, quais os mecanismos que eles têm, e como essas respostas afetam o todo da população. Essa compreensão é importante do ponto de vista da conservação porque esses eventos de chuvas intensas, secas prolongadas e aumento de temperatura vão ficar cada vez mais recorrentes. E vale para todas as plantas, não só para a palmeira-juçara”, reforça o pesquisador.
Outro aspecto observado pela pesquisa foi o tamanho das raízes adventícias, aquelas que crescem de forma secundária a partir do caule, de indivíduos clonais (oriundos da reprodução clonal) e solitários (oriundos da reprodução sexuada).
Guilherme encontrou uma diferença significativa de tamanho, com os clones apresentando raízes muito maiores. “Essa diferença indica que os indivíduos clonais assumem uma evitação de estresse, que nesse caso é o alagamento. Porque as raízes elevam o tecido dos indivíduos, diminuindo a parte submersa em eventos de alagamento. Já os solitários apresentam um maior nível de tolerância ao estresse”, detalha o pesquisador, que aponta que esses solitários podem ter outro tipo de resposta, talvez fisiológica, para lidar com as situações de estresse.
“Meu trabalho é o primeiro a olhar para reprodução clonal da palmeira-juçara do ponto de vista investigativo, então ainda que não seja conclusiva, porque é uma pesquisa extensa, são indícios muito significativos”, reforça o ecólogo.
O pesquisador destaca ainda que são necessários mais estudos para entender os impactos, no longo prazo, que a maior taxa de reprodução clonal pode ter na genética da população, já que uma baixa variabilidade genética pode deixar os indivíduos mais vulneráveis a doenças e pragas. A produção de frutos, entretanto, não é afetada pela técnica reprodutiva alternativa, afirma Guilherme. Um consolo para os diversos animais – e humanos – que se beneficiam de seus frutos.
Os estudos do ecólogo fizeram parte de seu mestrado, concluído no início deste ano na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Guilherme conta que a seleção pelo Bolsas FUNBIO fez com que acreditasse mais nele e no seu projeto de pesquisa, além de ter sido um apoio fundamental para execução dos estudos. “Antes eu pedia para compartilhar o campo com pessoas que iam fazer pesquisas nesses lugares. Então eu ia enquanto a pessoa fazia a pesquisa dela, dava uma ajuda para ela e fugia quando dava para fazer um pouco da minha pesquisa também. Isso é muito ruim porque você não tem autonomia para determinar quando vai, o tempo que vai ficar, coisas que fazem diferença pro resultado. Ter essa autonomia, proporcionada pelo Bolsas FUNBIO, foi um ganho gigantesco pro desenvolvimento da minha pesquisa”, conclui.