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O silêncio ensurdecedor dos bugios e a retomada da cantoria em Ilha Grande
O “canto” dos bugios não é um som fácil de ignorar. Seus urros preenchem as florestas e anunciam a presença dos macacos, sem que seja necessário ver uma única silhueta por entre os galhos. Entretanto, o súbito silêncio nessas matas tradicionalmente ocupadas pelos bugios e seus sons é que, de fato, é ensurdecedor. Foi durante uma viagem para Ilha Grande, no litoral sul do estado do Rio de Janeiro, que a pesquisadora Marianne da Silva Bello teve seu primeiro contato com esse primata e se encantou com sua cantoria peculiar. Quando voltou para a ilha, cinco anos depois, após o surto de febre amarela, ela se espantou com o silêncio. A boa notícia é que, aos poucos, como registra a pesquisa de Marianne, a espécie tem se recuperado e retomado a sua tradicional cantoria.
“Eu fui para Ilha Grande pela primeira vez em 2014, numa viagem da faculdade e logo que eu cheguei na ilha eu escutei a vocalização do bugio e todo dia eu escutava. Isso despertou minha curiosidade de que bicho era aquele, que animal fazia um barulho daqueles e porquê, onde viviam… E ouvia das pessoas que o bugio era a voz da ilha, o som da floresta, então descobri não só a importância ecológica que a espécie tinha, mas também essa relação com a comunidade e a importância cultural que eles davam ao bugio”, lembra a bióloga Marianne.
Foi a sementinha de uma paixão que ela só conseguiu trabalhar mais tarde, já no mestrado, que começou em 2019 na UERJ e contou com apoio do Programa Bolsas FUNBIO – Conservando o Futuro. Marianne foi a campo entender o que havia acontecido com os bugios-ruivos (Alouatta guariba) de Ilha Grande e ouvir dos próprios moradores da ilha suas percepções sobre o desaparecimento do primata e a doença.
“Nós vimos, em nível nacional, que o surto de febre amarela [entre 2016 e 2018] também acabou resultando numa caça aos primatas por gente que achava que eles eram culpados pela doença. Eu queria entender se isso acontecia em Ilha Grande, porque aí, além do efeito direto da doença, teríamos o efeito indireto”, explica a bióloga que conduziu sua pesquisa de mestrado entre 2019 e 2021.
Nas entrevistas com os moradores, Marianne perguntava o que eles sabiam sobre a espécie, como eles entendiam a febre amarela, se eles ouviam e viam os bugios, se viram indivíduos mortos.
Diferentemente do resto do país, em Ilha Grande – como mostraram as entrevistas feitas pela pesquisadora – houve poucos casos de conflito entre os moradores e os macacos. Pelo contrário, a maioria dos locais percebe o bugio como símbolo e patrimônio da ilha; sente falta deles e de sua cantoria na rotina; e afirmou que denunciariam se vissem alguém agredindo o animal.
No campo do mestrado, a primatóloga fez também uma estimativa dos primatas a partir de dez trilhas que ela percorria regularmente, anotando qualquer aparição de mamíferos. Ao todo, andou aproximadamente 310 quilômetros e registrou apenas dois encontros com os bugios. Essa baixa amostragem não permitiu que a pesquisa quantificasse o tamanho dessa população na ilha, mas fez com que outras perguntas surgissem, as quais Marianne tenta responder no seu doutorado, já em andamento.
A principal questão é saber qual a viabilidade da espécie em Ilha Grande no longo prazo, considerando que a população está isolada em uma ilha e, por isso, está naturalmente mais vulnerável não só a doenças, mas também a ameaças como a reprodução entre parentes (endogamia). Essas respostas ajudarão a nortear qual a melhor abordagem e ações de manejo que devem ser feitas nessa população em prol da espécie. O bugio-ruivo é uma espécie endêmica (exclusiva) da Mata Atlântica e está ameaçada de extinção.
Os moradores locais seguem como parte fundamental da pesquisa, dessa vez como colaboradores, ajudando a documentar a lenta recuperação da espécie na ilha. Dos onze grupos de bugios mapeados em Ilha Grande atualmente, Marianne registrou diretamente apenas três. Os demais são contribuição direta da rede de ciência-cidadã estabelecida pela bióloga com os moradores. Por meio de um grupo de Whatsapp, eles compartilham informações constantes sobre a espécie: onde os grupos estão, o tamanho, nascimento de filhotes. “A partir disso eu consigo acompanhar. É um projeto de longo prazo”, afirma Marianne.
A expectativa da primatóloga é construir um programa de monitoramento participativo dos bugios na ilha. “Espero que a gente consiga criar líderes locais para esse monitoramento no longo prazo, para fazer esse trabalho de forma efetiva e manter os moradores mobilizados”, destaca.
É junto deles que Marianne quer contar a história dos bugios em Ilha Grande. “Eu sempre pensei ciência como uma construção de vários saberes. A relação com os moradores foi muito valiosa para mim, aprendi muito com eles. Eles me ensinaram qual o cheiro do bugio, por exemplo, que frutas eles gostam de comer. Eu queria muito integrar essa perspectiva local, que tantas vezes não é considerada nos estudos, para construir esse conhecimento e contar essa história dos bugios da ilha”, completa.