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O reino dos mexilhões
Foto: Arquivo pessoal
O alagoano Misael de Lima tinha apenas 19 anos quando decidiu cruzar o país para chegar à praia de Jurujuba, em Niterói (RJ), onde algumas famílias conterrâneas tentavam melhores condições de vida. Na década de 1990, o grupo de migrantes conseguiu criar a Associação Livre de Maricultores de Jurujuba (ALMARJ), erguer um centro de beneficiamento e se tornar o maior produtor de mexilhões do estado do Rio de Janeiro. Nos últimos anos, porém, o sonho começou a se deteriorar com a pandemia e com as máquinas corroídas pela maresia. Mas com o apoio do projeto Educação Ambiental à iniciativa Mexilhão Rio e Pesca Solidária, as 120 famílias já se preparam para o recomeço.
Nunca foi fácil. Ainda eram os anos 1970 quando Misael aterrissava em solo fluminense acompanhado do cunhado e uma mala nas costas. Viveu de favor por algum tempo e descolou sua própria moradia improvisada para descansar o corpo quando não pensava em como ganhar a vida na nova cidade. Mas nem sempre conseguia cerrar os olhos: “Vivíamos em um barraco onde não dava para dormir quando a maré subia, porque havia o risco dele se desfazer inteiro”, conta.
Mas se o mar lhe tirava o sossego à noite, foram as águas salgadas também que vieram mudar a história de seus dias. Enquanto desbravava o bairro, viu algumas famílias alagoanas com panelões em frente a seus barracos e resolveu assuntar para saber que negócio era aquele. Nunca havia trabalhado com pesca ou maricultura. Mas quando se deu conta, já estava atravessando a Baía de Guanabara com os companheiros para vender mexilhões no centro do Rio de Janeiro. Com seu carisma e perspicácia, rapidamente virou uma liderança.
No final dos anos 1980, os ventos da bonança começaram a soprar mais forte em Jurujuba, quando técnicos da Fundação Instituto de Pesca do Estado do Rio de Janeiro (FIPERJ) lhes bateram à porta. Queriam ajudar a comunidade a organizar aquela produção que já chamava atenção no mercado. Foi o pontapé inicial para o nascimento da ALMARJ, em 1992. Com a associação de pé, vieram aos poucos a regularização fundiária das moradias, a construção do Centro Comunitário de Beneficiamento de Mexilhão (CBM), a criação de uma cooperativa, o Selo de Inspeção Estadual e o título de maiores produtores de mexilhão do Rio.
Não era pouca coisa. Até porque, naquela época, erguer um centro de beneficiamento de mexilhões significava criar algo praticamente do zero. “Quase não existia no mercado brasileiro algo nessa linha, não havia maquinários para se comprar”, diz Misael, que àquela altura já estava na presidência da ALMARJ – onde, aliás, continua até hoje. “Tivemos que botar os neurônios para pensar”.
Obstinado, levou um saco de mexilhões em uma obra, pediu ao operário que os rodasse na betoneira onde se mistura o concreto, e percebeu que o utensílio poderia servir para a lavagem dos mariscos. Viu que as telas usadas para peneirar areia também dariam bons equipamentos para selecionar os moluscos. E aos poucos o Centro de Beneficiamento (CBM) foi ganhando forma, com maquinários criados e adaptados pelo alagoano.
O trabalho realizado pela ALMARJ chegou a receber apoio e homenagem da Organização das Nações Unidas (ONU). Mas anos depois do ápice, a maresia foi maltratando as peças e elas começaram a emperrar a produção. Para completar, veio a pandemia e desarticulou de vez os negócios da comunidade: a cooperativa foi desativada, as famílias voltaram a trabalhar com os panelões nas calçadas e o selo de inspeção que lhes garantia o acesso a mercados maiores foi perdido.
A maré baixa parecia ter voltado com tudo. Mas Misael e seus companheiros não se deram por vencidos. A luz começou a reaparecer no horizonte com a aprovação dos subprojetos Mexilhão Rio e Pesca Solidária, em 2021. Enquanto o primeiro vem recuperando o maquinário e reformando o CBM, a outra iniciativa dá o suporte necessário para que a associação retome os trabalhos da cooperativa e receba de volta o selo de inspeção estadual.
“O CBM é o coração deles. Estamos instalando placas solares, que devem reduzir quase 90% do valor da conta de luz. Compramos novas máquinas, reformamos algumas antigas. E vamos providenciar jaleco e avental para que eles trabalhem uniformizados”, cita Maurício Duppré, à frente do projeto Mexilhão Rio.
Pela Pesca Solidária, o trabalho é de formação e fortalecimento institucional. Serão vários módulos de oficinas sobre cooperativismo, gestão, direitos humanos e cidadania, compras públicas e controle social. “A ideia é trabalhar com eles a cadeia de valor da maricultura e melhorar a participação social, preparando-os para tomarem assentos em conselhos municipais, por exemplo”, diz Márcio Santos, coordenador da iniciativa.
Com as raízes fincadas próximas do mar, as famílias alagoanas de Jurujuba sabem que a vida é feita de movimentos, de perdas e ganhos, de idas e vindas. Sabem também que a maré sempre há de virar. “Já passamos por muitas barreiras desde que chegamos aqui”, diz Misael. “Se o cara não for firme, morre no meio do caminho. Tem que ter perseverança”, ensina. E isso nunca lhe faltou.