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Mulheres em Rede
Luceni Hellebrandt estava prestes a terminar o mestrado sobre conflitos na pesca artesanal. Quando adentrou o salão para acompanhar mais uma reunião de pescadores no município gaúcho de Rio Grande, tomou um susto: o espaço estava tomado por mais de 200 mulheres que reivindicavam ser reconhecidas como pescadoras pelo Estado. “Aquilo estava totalmente fora do padrão do que eu vinha observando. Em geral os homens eram maioria nos encontros. E quando havia mulheres, elas ficavam ao fundo, não se envolviam nas discussões”, diz.
O episódio sacudiu as estruturas de Luceni. Cientista social pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), sua terra natal, ela já se debruçava sobre o mundo da pesca há alguns anos. Mas nunca tinha se dado conta de que as mulheres faziam parte daquele universo. E não estava sozinha: a invisibilidade feminina costuma ser perpetuada pela própria academia.
“Ainda está no nosso imaginário que a pesca é uma atividade estritamente masculina. Quando os pesquisadores chegam numa comunidade pesqueira, as entrevistas sempre são feitas com os homens. E se alguma pergunta é direcionada às mulheres, também se espera que eles validem aquela opinião”, afirma.
Luceni nunca mais repetiria o erro. Pelo contrário: dali em diante, buscou entendê-lo. Em 2013, começou um doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e se convenceu de que não há pesca que se sustente sem as mãos femininas – mesmo quando não são elas que puxam a rede do mar.
“Ainda que os homens sejam maioria na captura, as mulheres acabam desenvolvendo inúmeras atividades produtivas na cadeia da pesca. Enquanto eles estão pescando, elas estão cuidando da casa, reparando os apetrechos, limpando e vendendo o pescado”, diz a pesquisadora. “Então, apesar de nem sempre estarem no mar, as mulheres estão na base de todo o funcionamento da comunidade pesqueira”.
A cara e a voz delas
Desde que Luceni abriu os olhos para isso, tudo conspirou para que ela continuasse navegando seu barco em direção a este tema. No dia em que depositou sua tese de doutorado na biblioteca da UFSC, foi contratada pelo projeto Mulheres na Pesca: mapa de conflitos socioambientais em municípios do norte fluminense e das baixadas litorâneas. Na mesma hora, arrumou as malas e encarou mais de mil quilômetros rumo a Campos dos Goytacazes, um território totalmente desconhecido para ela.
Com financiamento do Projeto de Apoio à Pesquisa Marinha e Pesqueira, a iniciativa pretendia identificar os principais problemas sociais e ambientais nas comunidades pesqueiras de 7 municípios ao norte do estado do Rio de Janeiro. Os dados foram coletados a partir de entrevistas feitas nesses locais, onde pelo menos 10 mil pessoas estão envolvidas com a pesca artesanal – cerca de metade do gênero feminino. E desta vez, os gravadores não foram apontados para os homens: mais de 100 mulheres abriram suas portas e, com as mãos sujas de pescado, relataram situações que afetavam o dia a dia de seu trabalho.
“Muitas vezes chegávamos nas comunidades e os homens estranhavam que a gente estivesse ali para ouvir as mulheres”, conta Luceni. Na maioria dessas comunidades, famílias inteiras seguem a tradição da pesca, um conhecimento passado de geração em geração. Porém, muitas vezes a mão de obra das mulheres é encarada não como trabalho, mas como uma simples ajuda. Daí o estranhamento. “Por outro lado, como para elas era algo muito novo serem ouvidas, fomos muito bem recebidas. Uma coisa que facilitou bastante é que nossa equipe de campo sempre foi majoritariamente ou totalmente formada por mulheres”.
O resultado de tantos encontros e conversas é um mapa inédito com a cara e a voz dessas mulheres falando sobre conflitos socioambientais que elas se deparam diariamente. As preocupações passam, por exemplo, por grandes empreendimentos como o Complexo Portuário de Açu, em São João da Barra, disputas de território com fazendeiros que estão cercando lagoas em Quissamã ou o não reconhecimento legal delas enquanto pescadoras.
Segundo Luceni, o olhar das mulheres contribui para indicar problemas e nuances na comunidade pesqueira que nem sempre são vistos. Se os homens apontam a diminuição do pescado por alguma questão ambiental, por exemplo, as mulheres vão além, e podem indicar desdobramentos que costumam passar despercebidos. “Uma das entrevistadas relatou um quadro de depressão pois não estava conseguindo alimentar os filhos com a quantidade reduzida de pescado”, conta a pesquisadora.
O mapa está em fase de conclusão, e ainda este ano ficará disponível para toda a sociedade. Enquanto isso, a equipe do projeto colhe os frutos de outro produto lançado alguns meses atrás: o livro Mulheres na Atividade Pesqueira no Brasil. Organizado por Luceni e pela pesquisadora Silvia Alicia Martínez, a publicação traz em 15 capítulos a contribuição de aproximadamente 20 pesquisadores que voltam seu olhar para o universo feminino na pesca em todo o Brasil – do Rio Grande do Sul ao Amazonas.
“Até hoje não se tinha um livro específico sobre gênero e pesca em português. Então ele vem como um marco, uma grande contribuição do projeto”, comemora Luceni. Feliz com o trabalho que vem realizando nos últimos anos, a gaúcha espera que os dados produzidos ganhem eco e ajudem a tirar cada vez mais essas mulheres da invisibilidade.
O caminho já começou a ser traçado. No ultimo mês de março, quando Luceni participava de uma oficina com mulheres na cidade de Cabo Frio, o presidente de um fórum de pesca local estava passando, quando uma das pescadoras se levantou e o puxou pelo braço. Reivindicou que reservasse pelo menos duas vagas no fórum para pessoas do gênero feminino. A demanda foi atendida.
“Ver essas mulheres se reconhecendo, se valorizando, se impondo e disputando espaços de gestão, isso para mim já é uma grande vitória”, sorri Luceni. “Encerro o projeto com essas pequenas alegrias”.