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Mestres barqueiros
Sem barco não tem pesca.
Se as comunidades pesqueiras de todo o Brasil guardam um conhecimento histórico e cultural sobre as águas, os ventos, os céus e a biodiversidade, também são elas que preservam uma sabedoria milenar cada vez mais apagada. Hoje, a arte e o ofício de construir embarcações de forma artesanal está na cabeça e nas mãos de poucos mestres. E é para fomentar este importante elo da cadeia da pesca que o Projeto Educação Ambiental – sob gestão do FUNBIO – começou a apoiar cinco iniciativas no estado do Rio de Janeiro.
Presidente da Associação de Pescadores Livres de Tubiacanga (APELT), na Ilha do Governador, Delcio Almeida – com 58 anos de idade – é um desses guardiões que permanecem vivos e atuantes. Filho de pescador, ele e seus 4 irmãos cresceram ajudando o pai a botar na água os mais de 500 barcos que construiu no quintal de casa – pelo menos 200 deles tiveram as mãos de Delcio. “Este conhecimento vem de longe, faz parte da minha história”, diz ele.
Seguindo os passos do patriarca, Delcio montou uma oficina caseira e se tornou uma referência na região onde vive. Quando os pescadores locais têm algum problema com seus barcos, é para lá que eles apontam a proa. “Eles me ligam, vêm pedir ajuda, faço pequenos reparos. Hoje em dia ninguém aqui constrói embarcações. Mas as pessoas querem aprender”, garante.
A dificuldade na renovação de mão de obra, a transmissão oral do conhecimento e a incorporação de novas tecnologias pela indústria são alguns dos desafios que têm tornado este ofício artesanal cada vez mais raro. O encarecimento e a dificuldade no acesso à matéria-prima, assim como a perda de territórios tradicionais também são fatores que tornam mais comum a substituição de antigos barcos artesanais de madeira por outros de alumínio ou fibra de vidro, feitos industrialmente.
Mas se depender de Delcio e de tantos outros mestres que discretamente mantêm de pé este trabalho em suas comunidades, nos próximos meses dezenas de aprendizes terão a chance de alimentar esta cadeia produtiva.
Hora da escola
Sob coordenação do próprio Delcio e a bênção da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a iniciativa Estaleiro Escola Baía de Guanabara vai formar 60 alunos de sete municípios que margeiam a baía. Professores da UFRJ estão somando seu conhecimento técnico e acadêmico à experiência prática e tradicional de mestres barqueiros para oferecer junto com eles o curso de extensão que terá módulos online e presencial.
E para assegurar que os alunos permaneçam firmes ao longo dos seis meses de formação, o projeto irá remunerá-los, além de oferecer um pacote de internet para facilitar a participação virtual. A cada mês, eles terão também uma imersão prática de cinco dias no Hangar Náutico da UFRJ, na Ilha do Fundão, com hospedagem, alimentação e transporte garantidos.
“Vamos aprender a mexer não só com máquinas, mas com a memória do passado e do presente”, diz Delcio. “A ideia é fomentar este conhecimento para que ele seja espalhado quando as pessoas voltarem às suas comunidades. Temos que pensar longe”.
Na Região dos Lagos, nos municípios de Búzios e Arraial do Cabo outras salas de aula também começam a nascer. E neste caso, nos locais onde elas sempre existiram. A iniciativa Escola de Mestres Barqueiros vai remunerar pelo menos 18 jovens para que acompanhem e aprendam na prática a manutenção e construção naval artesanal liderada por seis mestres nessas localidades.
“Vamos fazer a ponte entre as gerações”, diz o engenheiro de materiais Yuri Walter, à frente do projeto. “Os aprendizes estarão onde os próprios mestres já trabalham, fazendo tudo no ritmo deles. É um formato que permite a troca de saberes e ao mesmo tempo possibilita uma assistência de mão de obra para esses trabalhadores”.
Em parceria com a Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), a iniciativa pretende incrementar o processo formativo com oficinas que vão abordar temas como segurança do trabalho, primeiros socorros, cooperativismo, economia solidária, entre outros. “Vamos levar especialistas para falar um pouco dos aspectos históricos e culturais, mostrar que aquela arte e ofício tem muitas conexões com várias outras comunidades”, diz Yuri.
Com o início desta jornada, os locais de trabalho dos mestres também vão receber melhorias, de acordo com as demandas que eles próprios levantarem: seja o conserto de um telhado, a compra de um maquinário ou uma reforma que precise ser feita. “Não vamos fazer nada de fora para dentro. Queremos trazer os mestres para o centro das discussões. Estamos chegando como apoio, não como tutela”, explica Yuri.
Afinal, é preciso cuidado e respeito com esses poucos profissionais responsáveis por manter vivo um saber tradicional que já atravessou tantas gerações. “O construtor naval artesanal detém um conhecimento histórico, cultural e tecnológico muito importantes. E isso definitivamente precisa ser valorizado”, defende o engenheiro. “Eles são um patrimônio brasileiro”.
O mestre barqueiro Assunção, em Búzios, em fotos de Clara Mara Gonçalves Chaves