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Primeira bacharel Kayapó, Maial Paiakan destaca importância da educação e conexão com ancestralidade em sua trajetória
Foto: Maial Paiakan/Acervo Pessoal
“É muito importante traduzir os marcos legais e termos jurídicos para o Mebêngôkre. Assim, jovens e mulheres poderão atuar com um novo instrumento e entender melhor os seus direitos”. A declaração é de Maial Paiakan e dá a dimensão do impacto de sua liderança para sua comunidade. Primeira pessoa de seu povo graduada em uma universidade, a bacharel em Direito é hoje a responsável pela tradução do português para a língua Kayapó de três dos mais importantes marcos legais relativos aos direitos dos indígenas brasileiros.
O trabalho é fruto da parceria estabelecida com o projeto Tradição e Futuro na Amazônia (TFA), patrocinado pelo Programa Petrobras Socioambiental. Ela prevê ainda a produção de podcasts e cartilhas, bem como a realização de oficinas nos quais os textos jurídicos serão explicados aos indígenas.
Filha de Paulinho Paiakan, importante liderança da etnia na busca pela demarcação de seu território, Maial conta que foi incentivada desde cedo a buscar o conhecimento dos ‘kuben’ (não indígenas) para ajudar o seu povo no fortalecimento de sua cultura e na proteção de suas terras, o que contribui decisivamente para a preservação da biodiversidade na Floresta Amazônica, objetivos também do TFA
Na entrevista abaixo, ela mostra admiração pelas mulheres de sua família e de sua etnia e ressalta a importância da educação indígena no processo de formação de lideranças femininas. Confira.
Qual importância tiveram os seus estudos na cidade de Redenção (PA), fora da sua aldeia, na Terra Indígena Kayapó (PA), para a sua atuação pelos direitos indígenas hoje?
O primeiro ensinamento que meu pai me transmitiu, quando eu era criança, foi: “Você tem que aprender e conhecer como os ‘kuben’ (não indígenas) trabalham com nosso povo”. Logo depois de terminar minha graduação (em 2015), tive a oportunidade de atuar em diversos espaços importantes para defesa de nossos direitos. Espaços de luta e resistência. É preciso ouvir os povos da floresta. Ouvir e aprender como lidar com a nossa terra e o nosso bem-viver. Temos o direito de ser consultados e expressar os nossos pontos de vista. Tanto as lideranças, quanto mulheres, caciques e jovens. E é preciso também respeitar as nossas decisões.
Quando você era criança, você foi estudar na cidade. Hoje, já existiam escolas nas aldeias e a educação indígena, em que professores indígenas dão aulas sobre a cultura de seus povos em suas línguas maternas. Essa é uma área que receberá apoio do TFA. A educação contribui para que jovens mulheres Kayapó se fortaleçam?
Sim. Eu e minhas irmãs fomos as primeiras a sair da aldeia para estudar, com incentivo do meu pai, Paulinho Paiakan. Foi uma decisão importante, revolucionária, que quebrou paradigmas. Três jovens em busca de conhecimentos do ‘kuben’ para depois retornar e ajudar nosso povo. Era assim que meu pai sempre falava.
Ao longo dessa trajetória, vi muitos jovens que iam para a cidade estudar desistirem tanto pela falta de ajuda financeira quanto pela dificuldade de continuar os estudos devido à diferença cultural, à língua e à distância da aldeia para a cidade. Não existia, na época, educação adequada para jovens indígenas. A dificuldade era muito maior.
Lembro bem que me senti obrigada a compreender e a falar o português (até os 7 anos de idade, Maial só falava a língua Kayapó). Foi bem difícil. Com o tempo, comecei a entender que é preciso ser forte e resistente para continuar a luta fora da terra indígena. Mas é preciso e necessário para que outras mulheres e jovens possam somar e não desistir.
Hoje, vejo muitos técnicos de enfermagem, enfermeiros e enfermeiras indígenas atuando na saúde indígena. Tudo é uma construção que vem do passado, do caminho da luta com bordunas e flechas que os antigos trilharam para defender nossos direitos, por exemplo.
Sempre lembro do meu pai falar sobre a Constituição Federal. Ele dizia: “Eu, seu avô e seus tios e tias conquistamos os nossos direitos na Constituição Federal, os artigos 231 e 232. Agora, são vocês, jovens, que devem defender e proteger nossos direitos”. É uma luta histórica que vem de uma geração de grandes lideranças. Uma responsabilidade diante da qual não devemos recuar.
E qual foi o papel que as mulheres da sua família, como a sua tia Tuíre e sua irmã O-é, lideranças importantes, tiveram no seu processo de formação?
Na tradição da minha família e do meu povo, recebemos vários nomes especiais em festas tradicionais (um exemplo é a Festa do Bep, em que meninos recebem o prefixo “Bep”, um dos oito possíveis, em seus nomes). São nomes importantes que devemos respeitar e honrar. Nos ajudam a seguir na direção certa. Tenho muito carinho pelo nome Panhpunu, que recebi em homenagem a minha avó paterna. Os antigos tinham uma disciplina muito rígida e devemos continuar seguindo as nossas tradições.
Tanto na minha família paterna quanto na materna, temos muitas avós, mães e tias muito fortes. Desde criança, aprendi com elas a honrar e respeitar essas qualidades e, ao mesmo tempo, a ter carinho e cuidado. Essa é a nossa base. Minha avó Patnhore, por exemplo, vem de uma família de lideranças fortes no nosso território e vasto conhecimento. Minha mãe, Irekran, seguiu essa disciplina de ensinamentos e, assim como minha tia Panhgroti, domina a técnica de pintura.
E a minha tia Tuíre sempre esteve presente com meu pai nas grandes lutas. Chamo de tia para tentar traduzir o grau parentesco para a sociedade dos ‘kuben’, mas, dentro da nossa sociedade Mebêngôkre, ela é uma das minhas tantas outras tias/mães. Ainda muito jovem, passou a proteger a família e o nosso território, sempre muito atenta e pronta para lutar.
Portanto, antes de falar do atual momento, é preciso sempre lembrar a luta dos antigos. Hoje, O-é, que é a primeira filha, segue nessa linha de liderança. Não somos nós que escolhemos o rumo a seguir, são nossos antigos, nossa tradição, cultura, raízes e, principalmente, nossos pais. Ela foi indicada por várias aldeias e várias lideranças para assumir um papel importante tanto na nossa sociedade como na sociedade não indígena. Atualmente, temos, mais ou menos, cinco lideranças femininas nas aldeias. Seguimos a luta com o conhecimento da nossa base e os estudos da cidade, sem deixarmos de ser mulheres Mebêngôkre.
Como você caracterizaria as mulheres Kayapó? Quais são os traços de personalidade e comportamento que você identifica como próprios das mulheres imersas na cultura da sua etnia, a mesma que o TFA busca valorizar?
Força, cuidado, paciência e persistência. Força pelo fato de lutarem por tantas coisas dentro do nosso território. Cuidado, paciência e persistência pelo fato de darem atenção para os mínimos detalhes de adereços tradicionais produzidos, em especial à pintura corporal, tão delicada, com as linhas geométricas mais perfeitas que eu já vi. Além disso, passam meses produzindo os braceletes e os enfeites para as festas.
Que papéis homens e mulheres desempenham dentro da cultura Kayapó? Como você vê essa divisão de atribuições?
No meu ponto de vista, não há divisão. O que existe é uma igualdade para manter a sociedade Mebêngôkre em equilíbrio. A divisão para mim é dividir em partes. No caso da rotina dentro da aldeia, existe, de certa forma, equidade. Dei o exemplo das pinturas feitas pelas mulheres com palito de inajá (uma palmeira nativa da região norte). Essa é uma atividade muito trabalhosa, delicada, que precisa de atenção, calma, paciência e, ao mesmo tempo, agilidade. Coisa que os homens dificilmente passariam horas para fazer. Como dizemos na nossa língua ‘menire nhõ kukradjá’ (coisas de mulher).
Mas vejo, por outro lado, no atual momento, as mulheres desempenhando papéis em vários espaços fora das comunidades, atuando juntos com os homens. Por isso, digo que existe uma luta em que nos encontramos juntos, lado a lado. Nós mulheres temos um vasto conhecimento sobre nossa tradição e a floresta.
Em parceria com o TFA, você vem traduzindo para a língua Kayapó três importantes marcos legais relativos aos direitos das indígenas: a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, a Convenção Nº 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais, e os artigos 231 e 232 da Constituição brasileira. De que forma esse trabalho será importante para o seu povo?
É muito importante traduzir os marcos legais e termos jurídicos para o Mebêngôkre. Assim, podemos falar em nossa língua materna nas reuniões e jovens e mulheres poderão atuar tanto no âmbito regional quanto no nacional com um novo instrumento, que é o ‘pi’ôk do kuben’ (papel do não indígena). Isso faz com que possamos entender melhor os seus direitos e o sentido da luta pelo nosso território.
O que você considera fundamental na busca dos indígenas pelos seus direitos e pela preservação do meio ambiente?
O ponto fundamental na busca dos indígenas pelos seus direitos é a luta pela vida. Isso engloba a nossa cultura, saberes, tradições, língua materna, nossa memória, nossos cantos e danças. E o nosso direito de viver livremente dentro dos nossos territórios tradicionais (no caso dos Mebêngôkre, na Floresta Amazônica). Tudo o que nos faz ser Mebêngôkre. Precisamos lutar para sermos Mebêngôkre até o fim.