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Ancestralidade e futuro: a história do povo Kayapó pelo cacique Raoni Metuktire
“No passado, meu pai contou para mim a história que meu avô contava para ele”. Assim o cacique Raoni Metuktire resume a tradição da oralidade, muito valorizada pelos Kayapó. As falas carregadas de conhecimento dos mais velhos são o caminho para conhecer as culturas e tradições dos povos indígenas, e para Raoni não foi diferente. Ele chegou a ser indicado para concorrer ao Prêmio Nobel da Paz em 2020, como reconhecimento a uma vida dedicada à defesa das culturas tradicionais e à preservação dos territórios.
Uma das lideranças mais conhecidas na luta pela preservação da natureza e pelos direitos dos povos originários, Raoni dá nome a um instituto que atua nas Terras Indígenas Capoto/Jarina, Menkragnoti e Panará, na divisa entre Mato Grosso e Pará e às margens do rio Xingu. Sua trajetória remonta aos movimentos pela demarcação de terras indígenas nos anos 1970, passando pela representação destes povos na Assembleia Constituinte no final dos anos 1980 e culminando em inúmeras mobilizações mais recentes, como o Encontro dos Povos Mebêngokrê, em 2020.
O Instituto Raoni é um dos parceiros do projeto Tradição e Futuro na Amazônia (TFA), patrocinado pelo Programa Petrobras Socioambiental. Nesta conversa exclusiva com a equipe do projeto, ele lembrou histórias contadas por seu pai e repassadas de geração em geração, além de falar sobre temas como a importância da natureza para a cultura Kayapó e a necessidade de as novas gerações indígenas se manterem conectadas às suas tradições.
Para Raoni, é importante que os mais jovens sigam ouvindo histórias como essas. A tradição oral é uma forma de se conectarem com sua ancestralidade. Por isso o projeto TFA registra e documenta as tradições do povo Kayapó, servindo como fonte de memórias para as futuras gerações Mebêngôkre. O objetivo também é permitir que a sociedade brasileira conheça e valorize as culturas dos povos indígenas. “A geração atual precisa manter a nossa cultura para eles continuarem sendo indígenas”, conclui o cacique. Abaixo, alguns trechos da nossa conversa com Raoni.
Como Iprere salvou a vida
“Iprere foi um criador de nossos avós, de nossos pais e nosso criador. Quando houve um incêndio na terra, toda a humanidade foi queimada. Iprere mandou o cunhado dele, que viu todos os esqueletos queimados e contou tudo o que viu. Iprere então respondeu: ‘Você está mentindo para mim, todos estão vivos’. O cunhado respondeu: ‘Vai lá, você só vai ver esqueletos’. No outro dia, ele foi. Na ida, pegou remédios para ressuscitar todos no mundo. Chegando ao local, Iprere colocou caibro para construção das casas e espanou remédios sobre os ossos. Todos ressuscitaram, e ele começou a cantar (confira o canto reproduzido por Raoni no vídeo abaixo). Fizeram suas casas e voltaram a viver novamente. Foi assim. Eu aprendi como ele salvou a vida, seja do fogo que queimou todo mundo ou da enchente que matou a todos.”
O preparo do milho
“Quando existiam florestas por aqui, só nossos avós indígenas viviam nessa terra. Nesse tempo, um rato fez uma revelação para uma anciã. O nome dela era Bekwyjryti e o rato se chamava Amjorenhokreny’janejno. Ela levou os netos para os rios. Quando estava lá, um rato subiu em seu ombro e ela o tirou. Ele voltou a subir no ombro dela, e ela o tirou novamente. Ela falou para os netos pegarem um pau, porque ela ia matar o bicho. Foi naquele momento que o animal revelou o milho.
Ele disse: ‘Vó, se acalma comigo que vou te contar uma comida boa’. E ela respondeu: ‘Então me conte sobre essa comida’. E ele começou: ‘Bõy. Leva um pouquinho e torra no pilão, depois faz um forno de pedra para assar e come. No fim, você bebe água para ficar com a barriga cheia que nem eu’. Ela respondeu: ‘Agora você pode ir porque já me contou da comida boa’. Tinha muita gente antigamente, por isso aquelas espigas que estavam no chão foram consumidas em poucos dias. Eles procuraram cipós e foram derrubando, com machado de pedra, durante seis dias. Eles falavam entre si: ‘Depois da derrubada, cada um pega as sementes e faz as roças para plantar para nosso consumo’. Foi assim que combinaram. Quando estava prestes a cair, cada grupo dançou, cantou e foi assim.”
O surgimento das armas
“Antigamente, quando o povo não tinha flecha, nem arcos, nem espingarda, uma cobra mordeu um homem, e ele perdeu o pé. Sua mulher o carregava sempre, mas ela se cansou e foi embora. Com isso, o filho mais novo prometeu ao pai que ficaria com ele para cuidar e ajudar.
Depois de um tempo, ele pediu ao pai para fazer uma visita a um grupo, e com a devida permissão ele foi. Enquanto o filho estava na visita, o pé que tinha caído voltou ao normal. Foi a cobra que o ensinou como fazer, e assim ele aprendeu tudo. Fazia facões, machados, anzóis, panelas, miçangas, fazia de tudo e deixava guardado em uma casa que ele fez.
Eu aprendi, nas histórias que meu pai me contava, que foi nesse momento que ele inventou a espingarda. Mas, no passado dos brancos, a espingarda foi criada com dois canos, carregando pela boca, colocando a pólvora, as chumbadas e, por fim, uma bucha para socar.”
Povos indígenas do mundo
“Eu viajei ao exterior e visitei um grupo indígena. Eles dançaram, eu vi e gostei muito. Na outra viagem, visitei mais um grupo indígena. Fizeram a mesma coisa, dançaram, e eu gostei muito. No Canadá também cheguei a conhecer mais povos, e eles fizeram a mesma coisa, dançaram, e eu gostei de ver. Aí eu pensei: ‘essa é a nossa cultura, temos que continuar’. E falei para eles assim: ‘Vamos tirar os brancos, vivermos só nós indígenas para continuar a existir’. Teve um encontro com seis aldeias indígenas, e falaram entre si que o Raoni estava certo. Eu gosto muito dos que estão do outro lado do oceano. Gosto de todo mundo. Por isso defendo todos contra o ataque dos brancos. Não foi só aqui no Brasil que eu falei com as autoridades defendendo indígenas, mas também no exterior. O meu pensamento foi sempre positivo. Dentro do meu pensamento está a saúde, a paz e a amizade para todos no mundo.”