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O início do recomeço
Foto: Beatriz Mattiuzzo/Caiu na Rede
Nove iniciativas de educação ambiental foram aprovadas em uma Chamada de Projetos Emergenciais que veio para mitigar os efeitos da pandemia sobre comunidades pesqueiras no litoral fluminense. A chamada tinha cinco linhas de ação: geração de renda, suporte às instituições locais, saúde sanitária, saúde mental e tecnologia ambiental. Mas a demanda veio principalmente para a primeira delas.
“A maioria das propostas está focada em geração de renda, o que mostra que essa é uma necessidade real nos territórios e nas comunidades”, diz Ana Helena Bevilacqua, gerente de Projetos do Programa TAC Frade, no FUNBIO. “Muita gente perdeu renda por conta do isolamento”.
Os projetos aprovados envolvem ações que vão de Paraty, extremo sul do estado do Rio de Janeiro, ao Norte Fluminense. Cerca de R$ 1 milhão será desembolsado para que, nos próximos seis meses, as atividades amenizem os impactos negativos da COVID-19 e melhorem a qualidade de vida das pessoas.
Caiu na rede, é fruta
É o que pretende, por exemplo, o projeto Caiu na Rede, liderado pela oceanógrafa Beatriz Mattiuzzo nas comunidades caiçaras de Provetá e Matariz, na Ilha Grande. Há dois anos morando na ilha, ela observou que uma grande quantidade de redes de pesca é descartada ou perdida no fundo do mar – as chamadas “redes fantasmas”. Começou a recolher pedaços que encontrava e propor aos pescadores que transformassem aquele resíduo em algo novo – como bolsas de hortifruti que poderiam substituir o onipresente saco plástico em feiras e mercados.
No início, ninguém deu muita bola. “As pessoas achavam a proposta meio maluca”, diz Beatriz. Até que ela encontrou pelo caminho Honorato Gonçalves de Castro, que pescou a ideia. Com 85 anos de praia, seu Filinho – como é conhecido – começou a jogar a rede no mar quando ainda tinha 13. Depois de quatro décadas no ofício, teve que abandonar a profissão por conta de uma labirintite que não lhe deixou mais.
Quando Beatriz chegou com as redes no ombro, seu Filinho resolveu desenterrar as agulhas e o conhecimento que tinha acumulado durante a vida: pela primeira vez, costurava não redes de pesca, mas sacolas de rede. “Foram uns três meses desenvolvendo o produto com ele, no ritmo dele. E por mais de 1 ano, antes da pandemia, seu Filinho era o único que produzia as sacolas”, conta Beatriz.
Com a chegada da COVID-19 e as medidas de isolamento social, as fontes de renda das comunidades começaram a cair. E outros pescadores resolveram seguir os passos do conterrâneo. Por intermédio da Marulho, as redes começaram a ser vendidas virtualmente para todo o Brasil, ajudando a complementar a renda das famílias com até R$ 1500 mensais.
Foi quando o FUNBIO abriu a chamada para iniciativas emergenciais de educação ambiental. Com apoio do Instituto de Pesquisas Marinhas, Arquitetura e Recursos Renováveis (IPEMAR) e da Marulho – uma microempresa que Beatriz fundou para a criação de produtos ecológicos e a divulgação da cultura local – o projeto Caiu na rede foi aprovado e ganhou novo impulso.
“Esse apoio vai ser essencial para melhorar as condições de trabalho, nos estabilizar e manter o projeto no longo prazo”, diz a oceanógrafa. Com o recurso, um bote será reformado para facilitar a coleta das redes e viabilizar a visita em outras comunidades, onde serão organizadas 10 oficinas de capacitação. A meta é que pelos próximos seis meses sejam resgatadas dos mares mais de 200kg de redes-fantasma para a produção de pelo menos 2 mil sacolas de hortifruti.
“As oficinas não serão apenas de confecção e costura de redes: vamos falar também sobre embalagem, apresentação e comunicação, fortalecendo e valorizando sempre as tradições e os saberes dos caiçaras”, explica Beatriz. “Queremos envolver mais jovens e mulheres na atividade, pois na Ilha Grande o conhecimento de costurar redes ainda está, em geral, nas mãos dos homens. E dar suporte para que mais pessoas possam replicar esse modelo de negócio”.
Mudança de maré
Foto: Zenilda Maria da Silva/Mulheres Nativas
Assim como na Ilha Grande, na Região dos Lagos a COVID-19 também trouxe impactos inegáveis para as comunidades pesqueiras que vivem próximas à Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo. Mas para quem é mulher, os desafios são imensos e anteriores a qualquer pandemia.
“A pescaria é muito vista pelo lado masculino. Quando começamos a pescar em um barco só com mulheres, os pescadores não aceitavam muito. Sofremos muita agressão moral: xingavam, faziam sinal feio, mandavam a gente ir lavar roupa, ver novela”, conta Margareth Julião, que desde os 15 anos de idade traz seu próprio pescado do mar.
No início, ela pedia ao irmão que a levasse. Mas com o tempo, começou a chamar uma amiga, depois outra, mais uma. E quando se deu conta, já eram pelo menos 10 mulheres avançando de barco sobre o oceano. “Hoje chegamos para pescar e todo mundo fala, cumprimenta, nos respeita. O pessoal diz ‘lá vem o barco das meninas’”.
E por onde vão, elas se movimentam e se fortalecem como os cardumes. “Quando sabemos de algum curso, vamos todas. Quando tem reunião, vai todo mundo também”, diz Margareth. E foi nesse espírito coletivo que começaram a produzir um cardápio variadíssimo com o que trazem do mar – de hambúrguer a sorvete de peixe. Em 2017, fundaram a Mulheres Nativas – Cooperativa de Mulheres Produtoras da Pesca Artesanal e de Plantas Nativas da Região dos Lagos. E alugaram uma sede para organizar o trabalho em grupo.
Não que elas tivessem condições financeiras para isso – não tinham. Mas acreditaram no sonho desde o primeiro minuto. De lá para cá, já ficaram na corda bamba inúmeras vezes, mas sempre deram um jeito de pagar o aluguel da sede para continuar produzindo. Em 2020, finalmente começavam a ver o dinheiro entrando com mais frequência. E aí veio o balde de água fria em forma de pandemia.
“Tivemos que fechar a cooperativa, desligar nossas máquinas e continuar pagando o aluguel, mas sem renda”, conta Margareth. “Foi quando apareceu a chamada de projetos do FUNBIO. Foi o nosso respiro de volta. Veio não só para reestruturar a nossa sede, mas também nos dar fôlego para colocar os nossos produtos na rua de novo”.
Com o projeto, toda a sede está sendo readequada para que as cooperadas possam continuar o trabalho protegidas da COVID-19: serão instaladas divisórias acrílicas, ventiladores e todas terão seus próprios equipamentos de proteção individual (EPI). Além disso, uma enfermeira vai coordenar a higienização do local e acompanhar a saúde de cada uma delas. Com a proteção em dia, a ideia é que a cada semana dos próximos seis meses a cooperativa transforme 60kg de pescado em quitutes exclusivos e renda para as famílias.
Uma consultoria administrativa também pretende garantir e estimular ainda mais a profissionalização das Mulheres Nativas. Vão colocar de pé um regimento interno e desenvolver um plano de negócio com ações de curto, médio e longo prazo.
“Toda essa reestruturação vai dar condições para que a gente possa voltar a trabalhar juntas.
Estamos 100% focadas no projeto. Daqui a seis meses teremos pernas para continuar caminhando”, diz Margareth, animada com o futuro. “O nosso recomeço começa agora”.