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Uma ilha em silêncio
Em 2014, numa visita ao centro de estudos mantido pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) na Ilha Grande, Marianne Bello ouviu pela primeira vez os sons que marcariam sua vida. Era algo que jamais escutara: uma sinfonia de bugios, primatas com até 12 kg, encontrados do México à Argentina, e que se comunicam por sons que remetem a roncos.
Em 2018, numa nova visita, posterior aos surtos de febre amarela que assolaram regiões de Mata Atlântica a partir de 2016, a chegada à Ilha Grande, no estado do Rio, foi marcada pelo silêncio. E por uma decisão: alertada pelas notícias de primatas mortos no continente por pessoas com o falso temor de serem contaminadas pelos animais, Marianne resolveu estudar a espécie na Ilha Grande.
Bugio-Ruivo (Alouatta guariba clamitans). Foto: Miguel Rangel Jr.
Lá, está a única população naturalmente isolada em ilha das Américas do Sul e Central. A pesquisadora queria saber se as pessoas estavam matando os animais, que por sua vez não eram monitorados. Felizmente, constatou que não:
“A população local tem carinho, uma relação cultural com os bugios. De manhã, o som é percebido como um despertador, a hora de acordar e tomar café. À tarde, quando o sol se põe, o som dos bugios marca a hora do lanche”, conta Marianne, apoiada pela edição 2019 do Programa Bolsas FUNBIO – Conservando o Futuro. O nome do projeto? “O silêncio dos inocentes”, numa alusão ao título do já clássico filme de 1991.
A mestranda, do Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Evolução da UERJ, fala da percepção positiva da população local em relação à espécie. Na Ilha Grande, macacos-prego são descritos como “bagunceiros”, e os saguis exóticos são lembrados como “destruidores de passarinhos”.
Sagui exótico (Callithrix jacchus). Foto: Allan Hoplkins
As entrevistas com moradores locais e também o monitoramento de grupos do primata, atualizarão estimativas populacionais. O último dado, levantado há 14 anos, indicava uma população de apenas 700 bugios.
Os resultados iniciais das conversas, interrompidas por conta da pandemia de COVID-19, indicam que os bugios não foram caçados pelos moradores. O silêncio, portanto, resultaria da morte dos animais em consequência da infecção pelo vírus da febre amarela. Bugios são particularmente suscetíveis a esses microrganismos.
Marianne espera também que a população local tenha papel ativo na conservação da espécie. A Ilha Grande é o lar de cerca de 7 mil habitantes e, ao fim do estudo, quase 600 terão sido ouvidos. Nas conversas, é abordado o conhecimento local: os moradores falam sobre encontros com animais (vivos ou mortos, visuais ou auditivos) nas trilhas, e conhecimento sobre a febre amarela.
A pesquisadora Marianne Bello entrevistando morador da Ilha Grande. Foto: Marianne Bello/Acervo Pessoal
“O objetivo é que se vejam como agentes participantes de fato, não apenas como pessoas consultadas que não recebem retorno sobre as pesquisas”, diz Marianne, que, na experiência em campo, vê repetidos desafios semelhantes aos encontrados ao longo da vida acadêmica.
“Mulheres demonstram maior confiança nas entrevistas. Nelas, as moradoras não falam apenas sobre os bugios, mas se estendem a outros temas, citam, por exemplo a poluição dos rios, a má qualidade da água. As entrevistas com os homens tendem a ser mais curtas”.
A resistência enfrentada por cientistas mulheres, jovens e negras, acabou servindo como motivação para a criação do podcast comanossavoz. Ele foi criado conjuntamente com a amiga Livia Firenze e está disponível em https://linktr.ee/comanossavoz. “Se você está disposto e gostaria de conversar com a gente, pega um café ou um chá e vamos lá”, convidam as podcasters desde maio deste ano. Um meio de romper com mais um silêncio, o das jovens cientistas negras. A conversa, portanto, não pode parar.