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Imensidão de água e floresta
Uma expedição ao interior profundo do Amazonas
Por Marco Bueno – Ministério do Meio Ambiente
Chegar na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Cujubim, no alto Rio Jutaí, estado do Amazonas, não é uma tarefa simples. Saindo de Manaus, são mais de 20 horas subindo o imenso rio Solimões de voadeira rápida até a cidade de Jutaí e depois mais 12 horas subindo o tortuoso e belo Rio Jutaí. São mais de inacreditáveis 900 km de água barrenta, quase cor de chocolate, céu carregado de nuvens e floresta a perder de vista nas duas margens do rio. De barco, então, nem se fala: o trajeto leva muito mais tempo, uma eternidade. A verdade é que tínhamos pouco tempo e, portanto, nossa expedição resolveu ir de avião de Manaus a Tefé, ganhando 500 km em apenas 50 minutos.
Mesmo assim, ainda tivemos de enfrentar 20 horas de rio. Mas foi extremamente compensador fazer a viagem, no final de novembro de 2018, seja pelo companheirismo e pelas amizades forjadas naquele ínfimo espaço de voadeira, seja pela sensação única de sentir o vento, o sol e a chuva bater no rosto enquanto aquela imensidão de água e floresta passava diante dos olhos como se fosse um interminável, porém mágico filme. A experiência é quase transcendental, como se você fosse transportado para uma outra dimensão hora após hora após hora, sentindo a água se chocando incessantemente contra o casco da voadeira e transmitindo toda a sua energia para cada célula do seu corpo.
A viagem demorou tanto que não conseguimos chegar na Vila Cujubim, onde seriam celebrados os 15 anos da RDS. A noite caiu e ainda estávamos a quase 2 horas da Vila. Dormimos numa comunidade – repleta de morcegos que davam rasantes sobre nossas redes – que nos abrigou para um breve repouso. De manhãzinha, às 5 horas, partimos e chegamos finalmente na Vila Cujubim, um vilarejo com casas construídas lado a lado bem em frente a um lindo remanso no Rio Jutaí. A Fundação Amazônia Sustentável (FAS), o governo do Estado do Amazonas e a prefeitura de Jutaí ajudaram na construção das casas na Vila Cujubim, que levou 2 anos para terminar.
Cujubim, a ave que dá o nome à reserva, tem um porte avantajado que condiz com a própria vastidão quase que inimaginável da RDS. São quase 2,5 milhões de hectares, maior que o estado de Sergipe e quase o tamanho do estado de Alagoas, fazendo desta Unidade de Conservação (UC) uma das maiores do Brasil e do mundo. Os 15 anos da RDS são para ser muito celebrados, e de fato foram, com o forró varando a noite até às 6 da manhã por duas noites consecutivas. Aproveitando a reunião do Conselho Deliberativo, uma pergunta que eu sabia que precisava fazer aos conselheiros da RDS, muitos deles comunitários moradores locais, era sobre os desafios enfrentados ao longo de uma década e meia de existência da UC, as batalhas vencidas, as perdidas, seus sonhos e projetos de futuro. Conversei com muita gente, mas quero destacar aquilo que aprendi com três pessoas muito interessantes.
Nas palavras da conselheira Milene Aguiar, uma das poucas conselheiras mulheres do Conselho Deliberativo da RDS, “É desafiadora a gestão, o gestor tem que estar preparado para diversos desafios. Começa pela logística, a cultura da população, a falta de políticas públicas atuantes, de parceiros, de pessoas comprometidas com a causa. Ninguém faz nada sozinho”. Além da questão de parcerias, Milene destacou que “o ponto chave é a educação, tudo começa pela educação. Se tivesse um trabalho de educação de base, a saúde estaria melhor, tudo estaria melhor. Até mesmo a questão do manejo, do trabalho sustentável estaria melhor”. E neste contexto educacional, completou dizendo que “eu vejo como desafio a sensibilização dos comunitários” e que é necessário o fortalecimento da organização comunitária para que os moradores de fato vivam em comunidade e trabalhem a potencialidade que têm.
Também conversei com Adevane Araújo, o jovem gestor da RDS Cujubim. Batalhador incansável, uma mistura de piloteiro, gerente, orador e motivador, Adevane vai na linha de Milene e afirma que “saúde e educação são fundamentais na RDS devido a eles morarem isolados”. Ele destaca que uma das maiores conquistas dos últimos 15 anos na RDS foi alavancar o manejo do pirarucu. Adevane me revela valores incríveis: “A comunidade Paraíso (vizinha à Vila Cujubim) trabalhou menos de 20 dias com o manejo do pirarucu, eles tiveram renda de 5000 reais cada família”.
Em termo de desafios para o futuro, Adevane acredita que o principal é buscar alternativas de geração de renda para os comunitários. Além disso há também a necessidade de fortalecer a organização comunitária e “buscar por lideranças fortes para o futuro, para que possa fortalecer a própria comunidade ali”. Mas este futuro esbarra em duas das maiores ameaças à integridade da UC hoje: “Tem outras pressões, a pressão do quelônio, por exemplo. O Rio Jutaí era muito rico de quelônios, tem gente que vem da cidade e sai daqui com 500, 600 quelônios”. A outra ameaça é a entrada do garimpo, com balsas e dragas que já seduzem moradores locais em busca do enriquecimento. Daí a importância do fortalecimento das cadeias produtivas como a do pirarucu para provar que a floresta e os rios podem gerar renda sim senhor para os moradores locais. “Precisaria muito desta linha específica para o Cujubim, de geração de renda”, afirma o gestor.
E olhando para o impacto do Programa Arpa na consolidação da RDS Cujubim, Adevane é categórico ao afirmar: “Se não existisse o Programa Arpa, o governo não teria pernas, recursos financeiros para a gente executar tudo o que a gente executa hoje. A gente consegue estar presente na UC todo mês. Se eu quero trabalhar a questão do fortalecimento da comunidade, o fortalecimento da associação, se eu não estou presente, eu nunca vou conseguir”.
Minha última prosa antes de pegar o rio de volta foi com o Seu Edivar Moura, 66 anos, um ex-seringueiro. Líder comunitário, sábio e exímio contador de histórias, foi ele que me deu o privilégio de ouvir uns “causos” muito interessantes sobre o Cujubim. Inúmeras histórias de onças, pirarucu, gente. Morador no Cujubim desde 2003, quando foi criada a RDS, está na Associação dos Extrativistas da RDS Cujubim desde 2005 e é o atual presidente.
Caboclo visionário mesmo esse Seu Edivar. Do alto da sua vivência de quase 7 décadas, ele entende perfeitamente o valor de Cujubim. Olha só o que ele disse sobre a floresta: “Aqui, é o pulmão do mundo. Só em carbono, ela vai dar milhões de reais. Para nós, que cuida, tem muita importância para o Brasil e para o mundo. Acho que nós temos 95% da floresta em pé. Nós cuidando da natureza, dos igarapés, para nunca poluir a água”.
Há quase uma década, Seu Edivar e moradores do Cujubim tem batalhado para levar adiante o manejo do pirarucu, que é a principal cadeia produtiva na UC e é manejado em mais de 16 lagos, apesar de eu ter ouvido em outras conversas que esse número ultrapassa os 30. A atividade vai bem, mas Seu Edivar é exigente: “Tem que melhorar a vigilância nos lagos, melhora o dinheiro no bolso. Tem que melhorar a certificação pelo IBAMA”. Ele também acha que tem que melhorar o plano de manejo florestal comunitário, que eles estão pelejando para fazer funcionar, além da saúde e da educação. “O agente de saúde tem que vir mais vezes”, cobra Seu Edivar.
E o que eu senti como a chave de muitos problemas na RDS é o maior envolvimento dos moradores na gestão da RDS e na própria vida comunitária. Seu Edivar diz que “Aqui, cada qual faz para si. Isso tem que melhorar. Quem sabe o que quer são nós mesmos. Deveria ter mais trabalho coletivo, mutirão, nós precisamos”. E sobre o futuro do Cujubim estar nas mãos dos jovens, ele cravou, serenamente: “Não posso dizer quem serão as lideranças, pois é a segunda vez que eu assumo a Associação para não ver ela morrer. Ninguém quer. Não tem jovem para ser líder, só se a gente treinar”. O desafio me soou demasiado grande, mas saí de lá com a esperança de que o velho caboclo consiga passar o bastão para as gerações mais jovens manejarem com sucesso este imenso território quase que inatingível no interior profundo do Amazonas chamado Cujubim.